Nativos digitais x imigrantes digitais
Os nativos digitais se criaram com a TV ligada e um controle remoto na mão, o computador também. O sotaque dos imigrantes digitais se percebe de formas diversas. Ao imprimir o e-mail, por exemplo.
Pedro Doria [para o caderno Link do Estadão]
Marc Prensky tem uma idéia original: ele divide o mundo entre “nativos digitais” e “imigrantes digitais”. É uma metáfora excelente. Tem aquele sujeito que nasceu e passou boa parte da vida num país, aí migra para o outro. Por mais anos que viva na pátria adotada, sempre terá, bem lá no fundo, talvez até um quê envergonhado, seu sotaque. Já o nativo, não. Aquele mundo, aquela língua, lhe são naturais – nem pisca.
Acontece da mesma forma no mundo digital. Há quem se educou dentro dele – a turma que está saindo das faculdades agora é a dos mais velhos – e há os imigrantes. Alguns imigrantes são bastante hábeis, se enturmaram na nova terra, sentem-se bem-vindos e em casa. Mas são imigrantes, vieram de outro mundo.
Prensky é um educador. Então, quando fala de nativos e imigrantes, suas preocupações se voltam para a sala de aula. Ele defende que há um descompasso entre a forma como o velho modelo de ensino oferece conhecimento e a forma como os alunos aprendem. O maior sintoma disso são os professores que reclamam da falta de concentração das crianças. Elas não conseguem se concentrar por muito tempo, afinal.
É verdade – de certa forma. Seus cérebros operam diferentemente. Enquanto naquele antigo mundo da palavra impressa éramos todos lineares, a garotada não é mais. Quem se criou antes esteve num planeta em que a lógica ditava um início, um meio e um fim, e cada passo, durante esse caminho, era fundamental para compreender o todo. Linear, pois é. Nos tempos digitais, as coisas são em paralelo.
Porque eles se criaram assim, só isso. A televisão ligada e um controle remoto na mão, o computador também, ligações de telefone – fazem tudo ao mesmo tempo. E não há nada de errado nisso, é como tudo funciona. Não há mais volta para o Kansas, Dorothy; é bom se acostumar com Oz.
O sotaque dos imigrantes – todos os professores o são – se percebe de formas diversas. É imprimir o email, por exemplo. Ou imprimir uma reportagem longa para ler. É ligar e perguntar se o prezado remetente recebeu o e-mail enviado. É, ao ter uma dúvida, não recorrer de presto à internet. Tudo sotaque de migrante. Cá o colunista é réu confesso: não consegue editar o que escreveu na tela, precisa de papel na mão, lápis e não resiste a uma notação de copidesque. (Como se jornal ainda fosse feito com linotipo.)
Outra mostra desse sotaque na língua digital é a aversão por videogames. Isto não é o professor quem diz, mas é uma observação cada vez mais comum de se ouvir em bocas diversas: games são uma nova forma de narrativa. Assim como o romance, o teatro ou o cinema, games são um contar de história – e se ainda não há um Shakespeare evidente, bem, a culpa não é do meio. A coisa tem só umas décadas de vida. Até nascer William Shakespeare, o teatro já era velho de um punhado de milênios.
E videogames são uma forma de narrativa que os nativos digitais conhecem bem e nada indica que venham a largar um dia. Nem há por que o façam. É como se, ao ficar adulto, o indivíduo deixasse de ir ao cinema. Assim, volta-se ao professor Prensky: o negócio dele é produzir videogames educativos. Portanto, fala defendendo o próprio bolso.
Quando escreve, Marc Prensky tem uns vícios de quem escreve livros de auto-ajuda. É um quê enfático como se ninguém mais tivesse razão, dita os fatos como os vê com um ar superior, conta as histórias como quem revela um segredo do sucesso. Mas, no fundo, é só vício de linguagem. E, se ganha dinheiro desenvolvendo games educativos, bem, talvez seja porque realmente acredita nisso.
Sua metáfora é excelente – a de nativos e imigrantes. É bem provável que esteja certo em outra coisa: o mundo digital está migrando do computador para aparelhos portáteis. Celulares, por exemplo. Ou iPods. Ou câmeras. Ou tudo em um. A mágica de aparelhos portáteis é que, produzidos em quantidade e subsidiados por quem vende acesso, ficam muito baratos.
Na última semana, um leitor me enviou um e-mail comentando que, se tivesse escolha, leria o Link pela internet. Mas não tinha dinheiro para ter computador. Enviou a mensagem que bateu em meu computador, ora, pelo celular. O que ele não sabe é que são os celulares que vão acabar com a exclusão digital.